A Virgem de Luján, Argentina


O Santuário de Luján

Por volta de 1630, António Farias (Faria) de Sá, um português morador em Córdova, na região do Rio da Prata, encomendou a um amigo de Pernambuco uma imagem de Nossa Senhora da Conceição para a capela que estava a construir na sua fazenda em Sumampa, junto às minas de Potosi, no Alto Perú.

O piloto português Andrea Juan (André João) († 1636) trouxe de Pernambuco duas imagens, embaladas separadamente, a primeira dedicada a Nossa Senhora da Conceição e a segunda à Maternidade de Maria. O navio chegou ao porto de Buenos Aires e daí seguiu para Córdova, seguindo o trilho habitual das carretas de mercadorias pelo chamado Camino Viejo. Segundo a tradição, ao chegar às terras de Bernabé Oramas (1591- 1645), rico fazendeiro e comerciante, junto ao Rio Luján, as mulas que transportavam a carga recusaram-se a mover. Sendo descarregado o caixote onde vinha a imagem da Senhora da Conceição, os animais só então se movimentaram, ficando assim a primeira imagem na depois chamada fazenda de Rosendo Oramas; a caravana seguiu o seu caminho, transportando a segunda imagem, até às terras de António Faria de Sá.

Nas terras de Bernabé Oramas, foi construído um pequeno oratório para abrigar a imagem, que ficou à guarda de um escravo – o escravo Manuel -, também vindo na caravana.

A devoção à Senhora de Luján cresceu na região, particularmente através do percurso das carretas em direcção a Potosi, no chamado Camino Viejo. Quando em 1663, foi alterado o traçado da rota, utilizando-se um outro trajecto – o Camino Real - as terras ficaram despovoadas, embora a devoção à Virgem de Luján continuasse a crescer.

Na década de 1670, Ana de Matos, senhora rica de Buenos Aires, também descendente de portugueses, vendo o descuido em que estava o primitivo oratório, expressou o desejo de deslocar a imagem para as suas terras, junto ao novo caminho. Para isso, comprou a imagem ao herdeiro da fazenda de Bernabé Oramas, e fez a sua trasladação.

Uma nova capela começou a ser construída em (c.) 1677, para albergar a santa imagem e acolher os peregrinos. Durante a novena de 8 de Dezembro de 1720, o Bispo Pedro de Fajardo afirmava que Luján parecia uma cidade, sendo tão numerosa a afluência de romeiros de todas as regiões platinas.

Um novo e maior santuário foi inaugurado em 8 de Dezembro de 1763, para o qual José de Sousa Cavadas, entalhador português natural de Matosinhos, realizou o retábulo-mor e, em 1776, os retábulos laterais, desaparecidos com a construção da grande basílica em 1890-1935.

Em 8 de Maio de 1887, o Papa Leão XIII celebrou a coroação canónica da imagem, estabelecendo igualmente Ofício e Missa Própria. Foi proclamada Padroeira dos três países da região platina, Argentina, Uruguai e Paraguai.

 

A imagem da Virgem de Luján

A imagem de Nossa Senhora de Luján é uma pequena escultura em terracota, com cerca de 40 centímetros. A Virgem está de pé sobre nuvens com quatro querubins, de onde emergem as pontas de lua em quatro crescente, iconografia de Nossa Senhora da Conceição. Tem as mãos postas e está coberta por um manto azul e branco, debruado a ouro. Está coroada – desde 1887.

A escultura, do século XVII, é de feição popular, rústica e provavelmente originária de uma oficina de São Paulo de Piratininga, na capitania de São Vicente, Brasil, onde, nos séculos XVI e XVII, havia uma grande tradição de imaginária em barro cozido, com artistas portugueses e/ou de origem portuguesa.

Em 1904, D. Juan Nepomuceno Terrero y Escalada, Bispo de La Plata, mandou fazer uma cobertura deixando apenas visíveis o rosto e as mãos, de forma a prevenir a deterioração da imagem causada pela desintegração do barro.

 

Origem da invocação

A devoção a Nossa Senhora da Conceição é antiquíssima em Portugal, bem como a celebração da sua festa a a 8 de Dezembro.

O culto estava desenvolvido em todo o país e estendeu-se a partir do século XVI, a todas as terras de além-mar por onde circulavam os portugueses, e unido à tradição de dedicar a primeira igreja de um lugar recentemente povoado à Imaculada Conceição.

António Faria de Sá, comerciante português no Rio da Prata, desejou para a primeira capela do lugar onde tinha a sua fazenda, também esta invocação, realizando a encomenda de uma imagem iconograficamente da Conceição. A segunda imagem, que segundo a tradição, foi também transportada a partir de Pernambuco era dedicada à Maternidade da Virgem Maria e deu origem a um outro santuário – Santuário de Nossa Senhora da Consolação de Sumampa -, também na região platina.

A Festa de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, celebra-se actualmente a 8 de Maio.

 

Os Portugueses no Rio da Prata

A circulação dos portugueses em terras de domínio espanhol foi muito anterior à união das duas coroas. Os portugueses instalaram-se em diversas partes da região do Rio da Prata, dedicados ao comércio, legal e clandestino, de mercadorias através do circuito Portugal – Angola – Brasil – Buenos Aires. Nas palavras de Maria José Goulão, hábeis nos negócios, facilmente maleáveis, adaptando-se a todas as situações, foram enriquecendo, casando com filhas dos senhores da terra. Durante o período de união das duas coroas – o período coincidente com a imagem de Luján -, foram oficialmente perseguidos, especialmente os cristãos-novos, embora as relações no terreno não fossem em geral conflituosas. Grande parte alterou o seu nome português para a versão castelhana, de modo a passarem despercebidos.

O tráfego negreiro a partir de Angola, nomeadamente de Luanda, forneceu grande parte da mão-de-obra das fazendas dos ricos comerciantes, portugueses e espanhóis. Os pilotos da rota Brasil-Argentina eram na sua maioria portugueses que frequentavam regularmente o porto de Buenos Aires e se relacionavam com os comerciantes da região.

António Farias (Faria?) de Sá seria um dos numerosos portugueses que se instalaram no virreinato del Perú, na América do Sul, a partir do século XVI. Não há registo de onde era natural, mas possivelmente seria filho de Francisco de Faria de Vila do Conde, como consta no Nobiliário de Felgueiras Gaio - N…casado no Brazil (1). Morador em Córdova, tinha uma fazenda no lugar de Sumampa, junto a Santiago del Estero.

Andrea Juan (André João?) († 1637) foi um piloto português dedicado ao transporte de mercadorias a partir do Brasil e relacionado com os comerciantes da região do Rio da Prata, nomeadamente Barnabé Oramas.

Ana de Matos, viúva rica, era filha de Lázaro de Matos Silveira, natural da Vila do Topo na ilha de São Jorge dos Açores. Esteve também relacionada com alguns dos mais poderosos homens de negócios e contrabandistas de origem portuguesa de Buenos Aires, nomeadamente com a família do célebre Diego de Vega (Diogo da Veiga).

Os portugueses deixaram inúmeras marcas na região platina, algumas delas que ainda perduram. Duas das imagens mais veneradas na Argentina são de produção portuguesa ou luso-brasileira, nomeadamente a veneranda imagem do Santo Cristo na Catedral de Buenos Aires, de Manuel do Couto (1671) e Nossa Senhora da Conceição de Luján, de origem paulista e autor desconhecido, padroeira da Argentina.

 

O Santuário de Luján e o Santuário da Muxima

O santuário da Virgem de Luján está de alguma forma interligado com o santuário de Nossa Senhora da Muxima em Angola.

Manuel da Costa dos Rios – o Escravo Manuel – era, provavelmente, originário de Angola. A igreja da Muxima está localizada no antigo percurso das embarcações que desciam o rio Cuanza transportando os escravos adquiridos nos mercados do interior, até ao porto de Luanda, de onde partiam os navios destinados ao Brasil. Possivelmente Manuel da Costa, como se deduz do seu nome, teria sido baptizado antes de ser vendido, como era habitual naquele tempo - uma forma de prevenir os escravos contra os possíveis maus tratos nos navios negreiros.

Segundo a tradição, Manuel veio no mesmo barco que transportou as duas esculturas de Nossa Senhora, encomendadas por António Faria de Sá, na rota habitual entre a Baía e Buenos Aires. A ele coube a guarda da imagem da Virgem de Luján, nas terras de Filiano Oramas, e acompanhou a trasladação solene para a fazenda de Ana de Matos.

Em 2013, no Santuário de Luján, foi solenemente entronizada a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Muxima (Angola), pelo Bispo de Viana, D. Joaquim Ferreira Lopes, num acto a que assistiu uma numerosa delegação angolana.

 

Luján e Muxima têm uma história singular com traços comuns: a mesma invocação – Imaculada Conceição -; a origem portuguesa da escultura; a pertença a regiões interligadas pelo comércio, incluindo o triste trato da escravatura; a devoção a Nossa Senhora dos primeiros cristãos nessas longínquas terras de perigos imprevisíveis; o crescimento do culto e da confiança na intercessão poderosa da Mãe de Deus ao longo dos séculos, até se tornarem santuários nacionais.

 

  1. FELGUEIRAS GAIO, Manuel José da Costa, Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga, 1938-1941, Tomo 13, p. 174.

 

REFERENCIAS

  • DIAS, Pedro, História da arte portuguesa no mundo (1415-1822). O espaço do Atlântico. S.l.: Círculo de Leitores, 1999.
  • GOULÃO, Maria José, ‘La puerta falsa de America’. A influência artística portuguesa na região do Rio da Prata no período colonial, dissertação de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2005.
  • VILARDAGA, José Carlos, Imagens em trânsito: as virgens de Luján e Sumampa e os circuitos coloniais na América Meridional na primeira metade do século XVII, Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 23, n. 2, 2015, p. 43 – 67.


Adicionar comentário

Comentários

Ainda não há comentários.