
Santa Cruz de Cochim, Índia
A cidade de Cochim está situada na costa do Malabar, na região sudoeste da Índia, no actual estado de Kerala. Região populosa, com uma história secular de comércio, onde se entrecruzaram culturas e onde chegaram os primeiros ocidentais no início do século XVI.
Cochim antes dos portugueses
No período em que chegaram os portugueses, existiam vários reinos, nomeadamente o Reino de Cochim. Estavam maioritariamente sujeitos ao poderoso Samorim de Calecute.
O comércio de especiarias, em grande parte nas mãos de muçulmanos, estava diferenciado por portos. No caso de Cochim, comercializava-se de modo especial a pimenta.
A população era constituída por hindus, na sua maioria, e incluía, além dos comerciantes muçulmanos que frequentavam o porto, uma comunidade de Cristãos de São Tomé e um aglomerado de judeus.
A chegada dos portugueses a Cochim
Em 24 de Dezembro de 1500 atracava no porto de Cochim a armada de Pedro Álvares Cabral (c. 1468 - c. 1520). A frota tinha partido de Lisboa a 9 de Março desse ano, rumo à Índia, na sequência da primeira viagem de Vasco da Gama. A grande armada tinha descoberto o Brasil a 22 de Abril, e continuado a sua rota para o Oriente, como tinha sido instruído pelo Rei D. Manuel I (1469-1521). Atracou primeiro em Calecute, mas não tendo sido bem-sucedida, dirigiu-se para Sul.
A armada portuguesa encontrou um bom acolhimento por parte do Rei de Cochim, Unni Goda Varma († 1510), desejoso de se libertar da tutela do Samorim de Calecute e percebendo a potencialidade do contacto com estes estrangeiros vindos de tão longe…. Autorizou os portugueses a instalarem-se na outra margem do rio, e a iniciar um posto de comércio – a primeira feitoria.
A armada de Pedro Álvares Cabral partiu de Cochim em meados de Janeiro de 1501, deixando em terra um pequeno grupo de portugueses, entre eles o feitor Gonçalo Gil Barbosa († 1509), o seu sobrinho Duarte Barbosa († 1521), um grupo de cinco franciscanos, e os restantes necessários para a manutenção e comércio da feitoria.
O rei deu autorização de edificação de algumas construções, além dos armazéns da feitoria, entre elas o Oratório de São Bartolomeu.
Em Abril de 1503, as forças do Samorim de Calecute atacaram Cochim, ocupando e incendiando a povoação, e obrigando a população, incluindo o rajá, a retirarem-se para a ilha de Vaipim. Em Setembro desse ano (1503) chegava a Cochim a Armada de Afonso de Albuquerque (c. 1460 -1515) que recuperou a povoação. Na famosa defesa de Cochim intervieram, além dos primos Francisco e Afonso de Albuquerque, o valoroso Duarte Pacheco Pereira.
Gonçalo Gil Barbosa
Gonçalo Gil Barbosa († 1509) foi o primeiro feitor de Cochim. Natural de Santarém, casou em (c.) 1480 com D. Mécia Mendes de Aguiar (c. 1466- c.1532) – filha de Pedro Rodrigues Portocarreiro, família de antiga radicalização em Portugal.
Embarcou na frota de Pedro Álvares Cabral em 1500, já com quatro filhos nascidos, na qualidade de escrivão da feitoria que se tencionava fundar em Calecute.
Gonçalo Gil Barbosa foi muito provavelmente testemunha da descoberta das terras de Vera Cruz a 22 de Abril. À chegada a Calecute, terá participado nas negociações com o Samorim, com vista ao estabelecimento de uma feitoria, e que culminaram na morte de Aires Correia (designado para feitor) e de Pêro Vaz de Caminha, autor da histórica Carta da Descoberta do Brasil.
Quando a armada chegou a Cochim, foi enviado a terra para iniciar as conversações – neste caso bem-sucedidas - com o Rei. Foi escolhido para feitor da primeira feitoria portuguesa do Oriente, que tanta importância teve no desenvolvimento da região. Ocupou o cargo durante dois anos, tendo um notável papel na implantação da primeira comunidade portuguesa em terras orientais e nas relações com as comunidades locais. Foi em Cochim que iniciou provavelmente o domínio da língua malaiala.
Recebeu em 1502, uma delegação dos Cristãos de São Tomé, representando o primeiro contacto dos portugueses com os altos dignatários esta comunidade. Foi transferido nesse ano para Cananor, como responsável daquela feitoria, pelos numerosos e valiosos contactos com as autoridades locais.
Regressou a Portugal em 1506, detentor de grande fortuna adquirida nas terras do Oriente, estabelecendo-se em Santarém.
Recebeu a Comenda da Ordem de Cristo, instituindo em 1507, o morgadio de Santarém. Neste ano, foi-lhe atribuída a distinção de Cavaleiro e Fidalgo da Casa Real, pelos valiosos serviços prestados à Coroa no distante Malabar.
Faleceu em Julho de 1509, sepultado primeiramente na igreja de Santa Maria de Marvila de Santarém. Sua mulher, D. Mécia Mendes de Aguiar, após ter instituído a Capela de Jesus no Mosteiro de Santo Agostinho de Santarém em 1531, fez edificar nela um notável túmulo para onde foram trasladados, conforme inscrição, os restos de seu pai (Pero Portocarreiro), e de seu marido (Gonçalo Gil Barbosa).
A ligação de D. Mécia ao Mosteiro de Santo Agostinho, onde tinha ingressado provavelmente um dos seus filhos - Frei Gil Barbosa -, manifestou-se também nos pedidos relativos à cerimónia do seu enterramento, que incluíam: a vontade de ser feita com vestimentas da Índia; a doação de alfaias preciosas ao mosteiro agostinho; a vinculação do morgado à obrigação do pagamento de 9.400 reais ao mosteiro agostinho pelo administrador.
A arca tumular de Gonçalo Gil Barbosa, na igreja da Graça em Santarém é, segundo alguns historiadores, o exemplar armoriado mais relevante da arte renascentista de Santarém.
Santa Cruz de Cochim
A primeira igreja de Cochim começou a ser edificada logo após a chegada de Pedro Álvares Cabral a 26 de Dezembro de 1500. Foi dedicada inicialmente a São Bartolomeu. Estava situada no perímetro da pequena fortificação que entretanto se construiu, em madeira – a construção em pedra estava destinada, segundo o uso local, aos templos hindus e às construções reais.
Em 1503, foi provavelmente destruída durante o ataque do Samorim de Calecute à povoação. Com a chegada das armadas de Francisco e Afonso de Albuquerque em Setembro desse ano, e a estabilização da região, foi reconstruída. A histórica fundação da fortaleza, onde se inseria o templo, vem descrita nas Lendas da Índia de Gaspar Correia: no dia 27 de Setembro de 1503, o Rei de Cochim "veo pelo rio com os Capitães [...] e com todos falando mostrou o lugar onde se fizesse, que era a ponta de hum palmar de terra alagadiça, que esteiro rodeava d’ágoa do mar, que ficava como Ilha. Onde logo o Capitão mor [Francisco de Albuquerque] tomou huma enxada, e cavou, dizendo «Em nome e louvor da fé de Christo, que cavando se descobrio a Sancta Vera Cruz, que Nosso Senhor quis mostrar a Sancta Elena» (1).
Em 1505, D. Francisco de Almeida (c. 1450-1510), 1º Vice-Rei da Índia, pediu permissão ao rei de Cochim para edificação de várias construções em pedra, nomeadamente a igreja:
Em 1506, iniciou-se a edificação da igreja (…) Ao outro dia pola menhã o Visorey com toda a gente se foy á Igreja, e ouvio missa da Vera Cruz, com sermão, em que a todos foy recomendado que pedissem a Nosso Senhor, que por sua bondade ouvesse por bem de seu sancto seruiço a obra que se fizesse, por ser o dia em que lhe aprouve mostrar á Raynha sancta Elena a sancta Vera Cruz, que ysto foy em tres dias de Mayo (2).
Nesse ano (1506), teve início o Hospital de Santa Cruz, provavelmente a primeira obra de assistência que se fez na Índia. A povoação tomou o nome de Santa Cruz de Cochim. Em 1511, o templo estava já ao serviço da comunidade cristã, possuindo uma longa lista de objectos e alfaias de culto.
Posteriormente, D. Manuel I mandou fazer uma igreja de maiores dimensões, por ser aquela piquena, mais de acordo com o desenvolvimento de Cochim, principal porto da costa do Malabar. Afonso de Albuquerque, 2º Vice-Rei da Índia, deu início em 1514, à edificação do novo templo, com três naves, capelas abobadas, coro sobre a entrada e uma torre sineira no meio da fachada. No entanto, há referências de que ainda não tinha um retábulo conveniente em 1518, de acordo com o pedido feito pelo vigário-geral de Cochim, Padre Sebastião Pires. E, em 1522, relatava a D. Manuel, o estado desolador em que se encontrava a igreja.
Em 1546, D. João III (1502-1557) ordenava expressamente a conclusão das obras até se acabar, sem reparar no custo, e isto por mãos e traça dos melhores architectos e officiaes (3). Enviou para o efeito o arco da capela-mor lavrado em Lisboa, bem como as arcarias que separavam as naves.
Em 1558, com a criação da Diocese de Cochim, a Matriz de Santa Cruz foi elevada a Catedral pelo Papa Paulo IV (1476-1559).
A tomada de Cochim pelos holandeses em 1663 teve um efeito desolador na região. Todas as igrejas foram destruídas, com excepção da igreja de Santo António e da igreja de Santa Cruz, esta transformada em depósito de armas.
Durante o ataque britânico a Cochim em 1795, grande parte da antiga igreja de Santa Cruz foi destruída, remanescendo a torre, ainda visível em 1904, e mais tarde destruída.
Em 1890, um oficial britânico J. E. Winckler reergueu dois pilares da antiga catedral, recuperados numa zona submersa junto da antiga fortaleza, como memória do grande incêndio de Cochim de 4 de Janeiro de 1889. Actualmente, os pilares actualmente encontram-se, um deles junto ao Bastion Bungalow; o outro no perímetro exterior da actual Basílica de Santa Cruz.
Em 2021, no âmbito da implantação do Kochi Water Metro, foram descobertas duas grandes bases de pilares. Uma investigação conduzida por Ratheesh Kumar R.T. do Department of Marine Geology and Geophysics at the School of Marine Sciences, Cochin University of Science and Technology, permitiu concluir em 2025, nomeadamente pelos traços manuelinos e a semelhança com os pilares remanescentes, serem vestígios da histórica Catedral de Santa Cruz do século XVI.
A Basílica de Santa Cruz de Cochim
Em 1887, D. João Gomes Ferreira (1851-1897), bispo de Cochim, decidiu reedificar a catedral, numa outra localização. Foi concluída no bispado de D. Mateus de Oliveira Xavier (1858-1929), com donativos da comunidade local e da arquidiocese de Goa. Foi consagrado o novo templo em 19 de Novembro de 1905, pelo Bispo de Damão D. Sebastião José Pereira (1857-1925).
Em meados do século XX, foi construído, junto ao templo, um pequeno santuário com a imagem de Nossa Senhora de Fátima, na sequência da visita da imagem peregrina às terras do Oriente, e que chegou a Cochim em 30 de Dezembro de 1949.
Em 1984, o Papa João Paulo II (1920-2005) elevou a Catedral de Santa Cruz a Basílica, por meio de uma especial Carta Apostólica TEMPLUM S. CRUCIS IN COCCINENSI DIOECESI AD DIGNITATEM BASILICAE MINORIS EVEHITUR.
Na actual Basílica, está exposto um dos pilares de granito da primitiva catedral, marco da história secular de Santa Cruz de Cochim.
A invocação de Santa Cruz é festejada no calendário litúrgico no dia 3 de Maio, festa da Invenção da Santa Cruz – celebrando de forma particular a descoberta do madeiro da Cruz por Santa Helena (c. 330) - e no dia 14 de Setembro, Festa da Exaltação da Santa Cruz.
As duas festas têm significado singular em Cochim. Em Setembro de 1503, a povoação foi reconstruída após a histórica libertação do ataque do Samorim de Calecute. No dia 3 de Maio de 1506, segundo o relato de Gaspar Correia, foi fundada a primeira igreja em pedra da região.
A Diocese de Cochim
A Diocese de Cochim foi criada pelo Papa Paulo IV em 4 de Fevereiro de 1557: (…) com a referida autoridade, elevamos e estabelecemos a dita vila de Cochim em cidade e a igreja paroquial de Santa Cruz da mesma vila (…) em igreja catedral. Foi uma das primeiras dioceses da Índia, com sede na igreja de Santa Cruz, abrangendo um grande território desde Cananor ao Cabo Comorim e Ceilão, estendendo-se pela costa leste da Península até ao Norte, e incluindo a Birmânia. A sua área foi-se reduzindo à medida que se desenvolviam as comunidades cristãs da região.
Em 1663, com a tomada de Cochim pelos holandeses, a cidade foi destruída: o clero expulso, arrasados os mosteiros e os colégios, o paço episcopal, os dois hospitais, treze igrejas e capelas. Todos os missionários católicos dos territórios ocupados pelos holandeses foram expulsos.
A administração da diocese revelou-se particularmente difícil durante o domínio holandês. Com a conquista britânica em 1795, a situação atenuou-se mas a diocese acabou por ser suprimida a 24 de Abril de 1838, sendo entregue a maior parte do seu território ao Vicariato de Verapoly.
Em 1 de Setembro de 1886, o Papa Leão XIII (1810-1903) promulgou a Carta Apostólica Humanae Salutis Auctor, restaurando a antiquíssima Diocese de Cochim. Foi nomeado Bispo de Cochim D. João Gomes Ferreira, com uma notável acção na reedificação e recristianização de toda a diocese.
Foi durante o bispado de D. José Vieira Alvernaz (1942-1951) - último bispo português - que a diocese recebeu a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, na histórica visita que percorreu o Oriente em 1949, e que teve repercussão particular na diocese de Cochim.
Em 1992, D. Joseph Kureethara (1929-1999), bispo de Cochim, promoveu, com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, o Museu Indo-Português, valioso testemunho da resiliência das comunidades cristãs durante o domínio colonial, e que guarda várias peças da antiga catedral de Santa Cruz. Portugal prestou-lhe homenagem dando o seu nome em 2001 a uma das artérias da capital.
Cochim é considerada o berço do catolicismo na Índia, a partir do trabalho apostólico iniciado pelos portugueses, que se estendeu a todo o Oriente.
Em Cochim, desenvolveu-se e permaneceu ao longo dos séculos, uma comunidade de famílias luso-indianas, sendo frequentes os nomes de origem lusa. Cochim manteve também o crioulo indo-português, até recentemente ainda falado na região, formado a partir do contacto entre o português e o malaiala, e particularmente relacionado com as comunidades cristãs.
- CORREIA, Gaspar, Lendas da Índia, Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciências, 1858, Livro Primeiro, Tomo 1, p. 385.
- Idem, Livro Primeiro, Tomo I, Parte II, p. 640.
- REGO, António da Silva, Documentação Para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, 3º Volume (1543- 1547), Ed. Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1950, p. 321.
- Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa, Bulas, maço 7, doc. 37. https://www.uc.pt/fluc/religionAJE/fontes/docs/Bula_Cochim_traduzida.pdf pp. 3-4. (consultado 26 Setembro 2025).
REFERENCIAS
- Revista Oceanos nº 19/20, Indo-portuguesmente, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1994.
- DIAS, Pedro, História da Arte Portuguesa no Mundo (1415-1822), O Espaço do Índico. s.l. Círculo dos Leitores, 1999.
- COSTA, João Paulo Oliveira e (Coord.), Descobridores do Brasil, Exploradores do Atlântico e Construtores do Estado da Índia, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, Lisboa, 2000.
- TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva, A cidade portuguesa de Santa Cruz de Cochim ou Cochim de Baixo. Algumas Perspectivas, in Aquém e Além da Taprobana. Estudos Luso-Orientais à memória de Jean Aubin e Denys Lombard, Lisboa, CHAM, 2002, pp. 136-189;
- MATTOSO, José (Dir.), Património de Origem Portuguesa no Mundo, arquitectura e urbanismo: Ásia, Oceania. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
- DOMINGUES, Vera Mónica Gaspar, Cultura E Património Urbanísticos De Influência Portuguesa Na Ásia, 1503-1663, tese de doutoramento, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017.
- RATHEESHKUMAR, R. T. , UTHARA , B. , DUNIYA RAJ, V. S., DEVATI, B., AKSHAY , P. B. , Geological and Cultural Heritage of Lithic Artefacts Unearthed from Fort Kochi, Southern India, Geoheritage, 15 Janeiro 2025.
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