
Santa Maria de África, Ceuta
Em Ceuta, a imagem de Santa Maria de África, oferecida pelo Infante D. Henrique, originou uma forte devoção que permanece viva na cidade.
A imagem
A imagem é uma representação expressiva de Nossa Senhora do Pranto ou da Piedade. Nossa Senhora, entronizada, tem nos braços o corpo de seu Filho, originalmente com coroa de espinhos. A Virgem segura na mão esquerda o significativo bastão – Aleo – pertencente a Pedro de Meneses (1370-1437), o primeiro governador de Ceuta.
A imagem foi oferecida pelo Infante D. Henrique (1394- 1460), poucos anos após a tomada de Ceuta em 1415, com indicação expressa de ser invocada como Santa Maria de África, e para a qual mandou edificar uma igreja: (…) os quaes eu mandey hua ymagem assaz devota de Santa Maria, mandando-lhe poer nome Santa Maria dAfrica, poendo a dicta jmagem na dicta casa que assy ffezeram e hordenaram (1).
Desconhece-se a autoria e a datação da imagem, sendo possivelmente de origem portuguesa com influência germânica.
É uma escultura policromada, em madeira de cedro, quase totalmente talhada num só bloco de madeira. Segundo os estudiosos, trata-se de uma peça de retábulo, pois não está esculpida na parte posterior.
O bastão Aleo, associado à conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415, é provavelmente ainda o original, aquele que D. Pedro de Meneses empunhou ao ser nomeado primeiro governador por D. João I (1357-1433). Em 1651, foi entregue a Santa Maria de África, pelo então governador da praça, D. João Soares de Alarcão e Melo (c. 1600-1669), em acção de graças por a cidade ter sido salva da epidemia que se alastrava pelo Sul da Península Ibérica.
Após Ceuta ter passado para o domínio castelhano, a imagem foi sendo recoberta ao longo dos séculos por ricas vestes e outros adornos, tão ao gosto da devoção local, a que se acrescentaram também as duas coroas.
A imagem teve um restauro integral em 1991, que devolveu as cores originais ao conjunto escultórico e revelou importantes detalhes da sua estrutura.
A representação da Virgem Maria com o corpo morto de Cristo nos braços após a descida da Cruz foi particularmente difundida em Portugal. As primeiras Pietá surgiram em terras germânicas no final do século XIII – Vesperbild - expandindo-se por toda a Europa durante o século XIV.
Esta devoção chegou a Portugal, provavelmente através das ordens mendicantes. Nos finais do século XIII, já existiam várias igrejas e capelas com esta invocação. Uma das mais significativas foi a capela de Nossa Senhora do Pranto fundada por Gil Aires (c. 1370-1437), escrivão da puridade de D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431), no convento do Carmo em Lisboa, e que é contemporânea da imagem de Santa Maria de África.
O Santuário de Nossa Senhora de África
A igreja foi mandada edificar pelo Infante D. Henrique, possivelmente no primeiro período da ocupação lusitana: (…) E, despois da dicta tomada e partida que della fezemos leixey em ella çertos meus, a saber: Joham Pereira (…), em guarda e defenssom della. Os quais todos juntamente, com fervor de devoçom e zello que tijnham a rreligiam christãa e a ssalvaçom de ssuas almas, em meu nome, per minha autoridade, hordenaram hua jgreja pera ouvyrem em ella missa; (…) dando eu logo a dicta jgreia aa dicta hordem (…). E também instituindo comenda (…) e fazendo della comenda, da qual ffoy o primeiro comendador frey Diogo Alvarez “ (1).
O Infante D. Henrique deixou a guarda de Santa Maria de África a João Pereira, Capitão de trezentos Escudeiros: “João Pereira a que por alcunha, chamavão Agostinho, ficou por Capitão de trezentos Escudeiros, que alli leixou o Infante Dom Anrique ao qual foi encomendada a guarda de Santa Maria d'Africa…” (2).
Em 1426 já estaria edificada, quando do terceiro casamento de D. Pedro de Meneses: (…) Ca estando o Conde Dom Pedro no tambo com Dona Britis Coutinha, com que novamente casava, (…) com todas las bandeiras (…) e asy forão levadas a Santa Maria de Affrica com muy grande, e alegre Procição (3). Esta primeira construção deveria ser muito modesta.
Foi criada a freguesia de Santa Maria de África - a primeira freguesia portuguesa neste continente -, sendo já paroquial em 1434, ano em que D. Henrique pediu ao Papa Eugénio IV (1383-1447) o alargamento dos seus limites de modo a abranger Tetuão, Vale d'Ângere, e Alcácer-Seguer. Data desta época provavelmente a respectiva irmandade ou confraria.
Em 1443, o Papa Eugénio IV (1383-1447) concedeu a paróquia e igreja à Ordem de Cristo, constituindo-a como Comenda, e acedeu a agregação das ditas terras de Tetuão, Vale d'Ângere, e Alcácer-Seguer, quando conquistadas aos mouros.
Em 1460, o Infante D. Henrique confirmou a origem da imagem e da igreja de Santa Maria de África. Encomendou também uma missa semanal ao sábado por sua alma em todas as igrejas de Nossa Senhora por ele ordenadas, nomeadamente Santa Maria de África: rrogo e encomendo, per esta presente, ao capelam que em dicta Santa Maria dAfrica esteuer (…) e a quaeesquer outros capellãaes e vigairos que ao diante forem, em minha vida e despois de minha morte, por ssenpre, com a graca de Deus e sua ajuda, (…) em cada ssomana, ao ssabado, dizer hua missa, (…), por minha alma; e a comemoraçam sseja de Sancto Sprito, com sseu rresponso e a oraçom de Fidelium Deus (4).
A igreja encontrava-se muito arruinada em 1560, conforme se deduz do pedido de obras à rainha regente D. Catarina "por ser muyto amtyga e nela choue como na Rua (…). Foi sendo sucessivamente restaurada ao longo dos séculos XVI e XVII.
Em 1604, foram reformados os históricos Estatutos da Confraria de Nossa Senhora de África, com referência à sua antiga instituição: La Cofradía que antiguamente aquí existía.
Em 1676, foi sede da Diocese, pela sua transferência da igreja de Nossa Senhora da Assunção.
Nos começos do século XVIII, começou a edificar-se a actual igreja, durante o bispado de D. Sancho de Belunza (1652-1731), ampliando a ermida inicial, e construindo-se um novo corpo. O retábulo-mor, em talha dourada, custeado pelo bispo D. Martín Barcia (1702-1771), foi solenemente inaugurado em 5 de Agosto de 1752.
Actualmente da antiga ermida subsiste, possivelmente, a actual sacristia e o espaço da capela-mor.
História do Culto
A devoção a Santa Maria de África difundiu-se logo desde o início da conquista de Ceuta. A ela recorreram os Infantes D. Fernando (1402-1443) e D. Henrique em 1437, no caminho para Tanger: Sahiram os Infantes dos navios e se foram logo derecta mente á Igreja de Sancta Maria d' Africa, onde estiveram em vigilia e devoções a parte d'aquelle dia e noite: e a outro dia ouviram missa (…) (5).
Esta invocação vulgarizou-se também na região. Data de 1455 uma referência à Barca de Santa Maria de África, uma das possíveis embarcações da carreira de transporte de mantimentos para Ceuta.
Em 1460, o Infante D. Henrique referiu-se à fama da sua milagrosa intercessão: A quall Virgem Maria, por sua emfijnda e ssanta misiricordia e por acrecentamento da nossa ffe, ffaz muitos milagres, teendo os deuotos christãaos que em a dicta cidade moram e outros comarcãaos, assy dos rregnos de Castella como do rregno do Algarue, e muitos catiuos christãaos que jazem em terra de mouros em ella muy grande deuaçam (4).
D. Fernando II (1430-1483), 3º Duque de Bragança, casado com uma das filhas do primeiro governador de Ceuta, atribuiu à Virgem de África a sua salvação na segunda campanha marroquina, cerca de 1461: O Duque de Bragança - Fernando II, do nome,& III. Duque, que foy duas vezes a Africa,& da segunda padeceo a tromenta, (…) chegou a Ceuta quasi perdido, era muyto devoto da Senhora de Africa, & a ella se havia muyto encomendado, & assim le atribuhio o salvarse a nossa Senhora de Africa (6).
A fama da poderosa intercessão da Virgem de África, especialmente nos períodos de epidemia ou de aflição, atraía peregrinos das várias partes de Ceuta e zonas circundantes.
Houve provavelmente procissões ao Santuário de Santa Maria de África desde o início, como a que se realizou durante o casamento de D. Pedro de Meneses em 1426. No entanto, o registo da primeira procissão com a imagem data de 8 de Abril de 1602, durante o governo de D. Afonso de Noronha (1602 – 1605), perante a ameaça de peste que grassava na cidade, segundo o relato de Correa de França (1767): el clero y Ciudad, en 8 de abril de 1602, lleuaron a la catedral en procesión de lágrimas y suspiros a la milagrosa imagen de Nuestra Señora de África, madre piadosa y refugio de estos ciudadanos. Continuaron las rogatibas y penitencias y en 8 de maio ya se experimento alguna mejoría y, proseguiendo las súplicas, se aplacó la ira divina. Y en 13 de iullio, en processión de gracias y alegrias se restituió esta sagrada imagen a sua antigua ermita (4).
A 9 de Fevereiro de 1651, quando novamente a epidemia ameaçava a cidade, vinda de Gibraltar, a população e o seu governador, D. João Soares Alarcão e Melo (c. 1600-1669), levaram a imagem em procissão ao antigo Miradouro de São Sebastião, frente ao Estreito, implorando a intercessão de Nossa Senhora de África. Nesta ocasião, em acção de graças por ter poupado Ceuta à epidemia, Santa Maria de África foi nomeada padroeira da cidade, tendo sido depositado nas mãos da Virgem o célebre bastão Aleo, conservado desde a conquista de Ceuta. Foi o início de uma tradição que actualmente ainda se mantém.
Em 1946, foi coroada canonicamente e desde então, apenas com algumas excepções por motivos de conservação, sai anualmente em procissão no dia 5 de Agosto, data da sua festa.O Papa Pio XII outorgou-lhe oficialmente o padroado em 1949, declarando-a Padroeira de Ceuta, consolo e amor e esperança de todos os ceutenses. Em 1954 foi nomeada Alcadesa Perpetua de Ceuta pelo Ayuntamiento da cidade.
A memória de Santa Maria de África também se manteve em Portugal.
Frei Agostinho da Silva faz referência à sua poderosa intercessão como principal defensora da cidade de Ceuta, no Santuário Mariano (1720) - embora a confunda com a imagem da Virgem da Assunção, da Sé de Ceuta: (…) nossa Senhora de Africa (…) a sua principal Governadora, & defensora. E assim em todos os assaltos, & cercos com que os Mouros procuràraõ recuperalla do poder dos Christãos, aquella Senhora, soberana Guerreyra a defendeo maravilhüsamente. E também à sua devoção nas conquistas de África: Costumavaõ sempre os Reys levar diante do exercito a Imagem da Senhora de Africa (6).
A obra de Alfredo Pimenta (1935) tem uma gravura de Nossa Senhora de África com legenda: Imagem da padroeira dos portugueses, existente em Ceuta, e que conserva o bastão que pertenceu a D. Pedro de Menezes, primeiro capitão daquela cidade. Ficou também referenciada na obra de Jacinto Reis (1967).
As tradições
Actualmente são muitas e variadas as tradições associadas a Santa Maria de África.
Nas Festas da Padroeira a 5 de Agosto, realiza-se solene procissão pelas ruas da cidade, celebrada com centenas de fiéis, em memória da sua poderosa intercessão, nomeadamente como defensora da cidade e dos ceutenses em época de epidemia.
Além da peregrinação ao Santuário, realiza-se a tradicional cerimónia da Renovação do Voto a 9 de Fevereiro, incluindo o Bastão de Mando – o Aleo - levado pelo Presidente da Cidade e depositado junto da venerável imagem de Nossa Senhora de África.
O Paso de Manto é um curioso culto realizado no primeiro sábado de cada mês. A escultura original não era imagem de vestir e não possuía manto. Este foi-lhe acrescentado posteriormente, além dos numerosos adornos. O restauro de 1991 evidenciou a necessidade de preservar a forma original, retirando-lhe indumentária e adereços entretanto acrescentados. Mantiveram-se os preciosos mantos, de várias cores consoante as festas do calendário litúrgico.
A Confraria de Nossa Senhora de África - Primitiva, Fervorosa e Ilustre Confraria de Cavaleiros, Damas e Corte de Infantes de Santa Maria Coroada - remonta possivelmente aos inícios da edificação da igreja.
A cerimónia de Tomada de Posse dos governantes de Ceuta começa com a entrega do Bastão de Mando – o Aleo -, pelo Deão da Catedral ao novo governador que depois o coloca nas mãos da Virgem de África.
Continua a realizar-se a Sabatina aos Sábados na igreja de Santa Maria de África, em memória do pedido do Infante D. Henrique, uma tradição com seis séculos de existência.
E permanece também nos topónimos da cidade, como a Porta de Santa Maria na antiga fortificação que foi, segundo a tradição, o local por onde entrou a imagem da Virgem de África enviada pelo Infante D. Henrique.
Ceuta lusitana – a reconquista cristã no Norte de África
O Ocidente de África foi anexado ao Império Romano cerca do ano 40 d.C., tendo sido dividido em duas províncias, Ceuta fazendo parte da Mauritânia Tingitana. É desta época que provém o nome Septem Fratres - Sete Irmãos -, designação dada pelos romanos aos sete montes da região (depois Septa).
A cristianização da região e em particular do Magreb, teve rápida expansão. As conversões multiplicaram-se, os fiéis organizaram-se em dioceses e, de forma geral, assumiram a antiga demarcação territorial romana. Em Ceuta, encontram-se ainda vestígios da chamada basílica tardo-romana, sinal da importância da comunidade cristã em Septem, que sobreviveu às invasões dos Vândalos no século V.
Ceuta foi reconquistada durante as campanhas norte-africanas do imperador bizantino Justiniano (c. 482-565). É deste período a edificação de uma igreja dedicada à Theotokos ou Mãe de Deus, actualmente ainda não identificada - segundo a tradição local, corresponderia ao sítio onde se edificou no século XV, o Santuário de Nossa Senhora de África.
A expansão do Império Bizantino na África do Norte manteve a fé cristã no território, com várias dioceses e centenas de paróquias antes da invasão árabe.
No início do século VIII, as forças muçulmanas avançaram pelo Magreb, estabelecendo a sua primeira base importante em Cairão. Segundo a tradição, Ceuta foi entregue ao califado árabe em 709 pelo nobre Julião, conde visigodo, e a partir daí utilizada como ponto de partida para a invasão da Península Ibérica.
Durante o domínio muçulmano, as comunidades cristãs no Magreb foram sendo absorvidas pelo domínio islamita. Ceuta passou por vários governantes: o emirato idríssida, o califato de Córdova, o período taifa, os almorávidas, os almoadas, os merinidas….
O desejo de recristianização desta região manteve-se vivo na Europa. Foram criados ou restaurados os bispados norte-africanos, in partibus infidelium – dioceses nomeadas em regiões de infiéis mas sem jurisdição efectiva -, nomeadamente a diocese de Marrocos.
Há referências de populações que mantiveram costumes cristãos.
Duarte Pacheco Pereira (1460- 1533) referiu-se aos habitantes das montanhas do Atlas: (…) em alguma maneira querem parecer que guardam alguma parte da fee christã, por que elles guardam ho Domingo muito estreitamente, & em tam alta maneira o solenizam que couza alguma nom fazem & se algum dos seus contrários vay naquelle dia entre elles nom lhe fazem nenhum mal mas antes recebem deita gente muita honra. (…) contarom seu modo de viver & crença & lhe diserom como os feus antecessores foram cristaãos & que tinham muitos livros que ficarom de seus padres antiguos em letara latina, os quaes guardauam por honrra & por memoria de sua geraçam (7).
D. Jerónimo de Mendonça (c. 1548-1607), na Jornada de África, referiu-se também aos Azuagos como descendentes de cristãos: Toda esta gente quando guardava a lei de Christo, sendo de certa idade bem piquenos lhe punha seu pai na face aquelle divino sinal da santa cruz, pêra se deferençarem dos mais, e prezamse tanto hoje d'isto seus descendentes, ainda que mouros, que todos trazem os mesmos sinaes postos por seus pais (8).
A conquista de Ceuta em 1415 pelos portugueses foi realizada no contexto da recristianização, com Bula de Cruzada. Marcou o início da expansão e da era dos descobrimentos.
Portugal tinha terminado de recuperar aos mouros as terras, com a conquista do Algarve em 1249. No entanto, a pirataria berbere e os constantes assaltos à costa algarvia, vindos do Norte de África, nomeadamente a partir de Ceuta, foi uma das razões para a conquista desta cidade por D. João I, uma conquista detalhadamente preparada.
Na empresa participaram, além do rei D. João I, o príncipe D. Duarte, os Infantes D. Pedro e D. Henrique, um grande número de fidalgos e cavaleiros da corte, entre eles o condestável do Reino, D. Nuno Álvares Pereira.
Em 21 de Agosto de 1415, os portugueses entravam pela porta de Almina, e conquistaram a cidade. A mesquita maior foi transformada em igreja e, no domingo seguinte 25 de Agosto, foi celebrada solenemente Missa. Para o governo da cidade D. João I propôs aos nobres presentes o difícil governo da praça. Perante a recusa dos principais fidalgos, D. Pedro de Meneses voluntariou-se, proferindo, segundo a tradição, a célebre frase – que defenderia Ceuta da moirama com o seu bastão - bastão em madeira de zambujeiro (Aleo).
Ceuta tornou-se diocese – a Primaz de África - em 1420 a pedido de D. João I, com sede na igreja de Nossa Senhora da Assunção – invocação de todas as Sés, segundo a tradição portuguesa. Foi escolhido D. Frei Aimaro de Aureliano († 1443), então bispo in partibus infidelium de Marrocos.
A conquista de Ceuta – a primeira lança em África, conforme a expressão do Condestável D. Nuno Álvares Pereira -, teve um impacto imenso quer na cristandade quer no mundo muçulmano.
Foi seguida pela conquista de várias praças ao longo dos séculos XV e XVI: Alcácer Ceguer, Arzila, Tânger, Safim, Azamor, Mazagão… A sua defesa e manutenção foi especialmente dolorosa. Ficou registado na memória de Portugal e de Ceuta, o cativeiro do Infante Santo, em Tânger, quando de uma das tentativas de conquista desta cidade em 1437, que os mouros pretendiam trocar por Ceuta, e que os portugueses recusaram, acabando por morrer em 1443.
No reinado de D. João III (1502-1557), foram abandonadas algumas das praças, mas Ceuta foi sempre mantida à custa de muitas vidas e dos constantes embates com a população muçulmana em redor.
Após a Restauração em 1640, Ceuta pronunciou-se a favor do rei castelhano, não aclamando o duque de Bragança como rei de Portugal. Os novos governadores mudaram de campo e juraram fidelidade a Filipe IV. Em 1645 morria o ultimo Bispo português, D. Gonçalo da Silva. Ceuta integrou-se definitivamente na coroa castelhana em 1656.
Ceuta Lusitana – o legado português
O legado português em Ceuta está muito vivo e arreigado. Os ceutenses prezam de modo particular a herança dos seus antepassados lusitanos. O próprio nome (Ceuta) é uma adaptação portuguesa do primitivo nome de Septa, com origem no termo latino Septem.
A matriz cristã da cidade implementada durante os mais de duzentos anos em que Ceuta era território português, perdurou e foi defendida pelos ceutenses até à actualidade. Além da poderosa presença de Santa Maria de África nas devoções e tradições seculares da cidade, são muitas as igrejas e capelas de origem lusitana, nomeadamente a Sé e a igreja de Santa Maria de África, a notável instituição da Misericórdia – uma das primeiras Misericórdias fora do Reino - e uma grande parte das invocações primitivas de origem portuguesa - Santo Amaro, Santa Catarina, São Sebastião…
Na cidade permanece o culto especial a Santo António, o santo português que sonhou cristianizar as terras dos mouros…
E personagens santas ou com fama de santidade: São Nuno de Santa Maria que participou na conquista de Ceuta em 1415, ainda como Condestável do Reino; o Infante Santo, falecido em cativeiro em 1443, para defesa de Ceuta; Santa Beatriz da Silva, nascida provavelmente em Ceuta em 1424, neta do primeiro governador; São João de Deus que trabalhou nas fortificações da cidade entre 1535 e 1538; São Manuel Pacheco, natural de Ceuta, um dos quarenta mártires jesuítas mortos durante a sua ida para o Brasil, em 1570.
Nas instituições civis, destaca-se de modo particular o brasão da cidade de Ceuta, com as armas portuguesas e o brasão de Lisboa.
Permanecem na memória e na toponímia da cidade notáveis personagens: D. Pedro de Meneses, o primeiro governador, a quem se deve o célebre Aleo; D. Henrique o navegador associado a Santa Maria de África, padroeira de Ceuta e à expansão portuguesa a partir da conquista desta cidade; D. Afonso de Noronha, governador de Ceuta entre 1540 e 1549 e D. Maria de Eça, a primeira mulher a assumir uma capitania norte-africana na ausência do seu marido em 1548-1549; Luís de Camões, que chegou a Ceuta em 1549, condenado a degredo, e que dedicou alguns dos seus versos memoráveis no Canto IV (estrofes 37 e 49) dos Lusíadas, à cidade de Ceuta e seu valente capitão:
Corre raivoso e freme e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala (…).
Eis mil nadantes aves, pelo argento
Da furiosa Tétis inquieta,
Abrindo as pandas asas vão ao vento,
Pera onde Alcides pôs a extrema meta.
O monte Abila e o nobre fundamento
De Ceita toma, e o torpe Mahometa
Deita fora, e segura toda Espanha
Da Juliana, má e desleal manha.
- DIAS, Pedro, História da Arte Portuguesa no Mundo (1415-1822), o Espaço do Atlântico, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1999, pp. 63-64.
- ZURARA, Gomes Eanes – Chronica dos feitos do Conde Dom Pedro de Menezes primeiro Capitão que foi na Cidade de Cepta, c. 1410-1474, cap. 6.
- Idem, cap. 21.
- PEREIRA, Diana Rafaela Martins, A “ymagem assaz deuota” de Santa Maria de África. Cadernos do Arquivo Municipal, 2ª Série, n.º 4. Lisboa, 2015, pp. 155-183.
- PINA, Ruy de, Chronica de El-Rei D. Duarte, p. 95.
- SANTA MARIA, Agostinho de, Santuário Mariano (…),Lisboa, na Officina de António Pedrozo Galram, tomo VIII, 1720, pp. 344-345.
- PEREIRA, Duarte Pacheco, Esmeraldo de Situ orbis, Edição da Imprensa nacional, Lisboa, 1892, p.35.
- MENDONÇA, Jerónimo, Jornada de África, Biblioteca de Clássicos Portugueses, Volume 38, Escriptório, Lisboa, 1904, p. 49.
REFERÊNCIAS
- REIS, Jacinto, Invocações de Nossa Senhora em Portugal de Aquém e de Além-mar e seu Padroado, [S.l.: s.n.]. Lisboa, Tipografia da União Gráfica.1967.
- DIAS, Pedro, História da Arte Portuguesa no Mundo (1415-1822), o Espaço do Atlântico, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1999.
- AZEVEDO, Carlos, Dicionário da História Religiosa de Portugal (dir.), Lisboa, Círculo de Leitores, imp., 2000.
- VILLADA PAREDES, Fernando (coord. General), Historia de Ceuta: de los orígenes al ano 2000. Ceuta: Instituto de Estudos Ceutíes, Ciudad Autónoma de Ceuta, 2009.
- PEREIRA, Diana Rafaela Martins, A “ymagem assaz deuota” de Santa Maria de África. Cadernos do Arquivo Municipal, 2ª Série, n.º 4. Lisboa, 2015.
- BARCELÓ, José Luis Gomez, Nuestra Señora de África y su Santuário. História de duas cidades. Câmara Municipal de Lisboa, Gobierno de la Ciudad Autónoma de Ceuta. 2015.
- MORALES, Ramón Galindo, Portugal en la Historia de Ceuta. Un pasado que tenemos muy presente, ROMERO-SÁNCHEZ, Guadalupe; GALINDO MORALES, Ramón y CAZALLA CANTO, Silvia (Coords) (2024). ¡Mira por dónde vas! Ceuta como recurso educativo. Ceuta, Universidad de Granada e Instituto de Estudios Ceutíes, 2024.
Adicionar comentário
Comentários