A Arte Da Língua de Angola, Brasil


A Arte da língua de Angola do Padre Pedro Dias (1622-1700), jesuíta no Colégio da Baía, no Brasil, destinava-se à catequese dos escravos provenientes das costas ocidentais de África.

Em 1694, o Padre Pedro Dias solicitou ao Superior Geral, Padre Tírso González, a licença de impressão da obra A Arte da língua de Angola, anotando que foi revista e aprovada pelo Padre Miguel Cardoso natural de Angola, muito versado nessa língua.

Concedida a autorização em 1697, o Padre António Cardoso assinou a primeira licença de impressão, conforme se lê no preâmbulo relativo às Licenças: [...] revi este livrinho e não achei em todo ele cousa que encontre a nossa Santa Fé [...] antes tem regras muito próprias e conformes ao idioma da dita língua, que serão sem dúvida de grande utilidade para os principiantes, e por isso digno de se imprimir. A obra foi publicada em Lisboa, nesse mesmo ano, (1697), na oficina de Miguel Deslandes, Impressor de Sua Magestade.

Segundo se refere no título, foi oferecida à Virgem Senhora Nossa do Rosário, Mãy, & Senhora dos mesmos Pretos, de grande devoção entre os jesuítas. Faz referência também ao catecismo bilingue Português-Quimbundo, publicado em 1642, dos Padres Pacconio e António do Couto, e cuja circulação tinha chegado às suas mãos.

Trata-se de um pouco conhecido documento da história luso-brasileira, um valioso registo sobre a circulação do quimbundo nas terras do ultramar português. A obra é considerada também de grande interesse para os linguistas, um precioso testemunho do desenvolvimento da escrita de uma língua de tradição oral, uma das primeiras tentativas de gramatização de uma língua africana. 

 

O Padre Pedro Dias autor da Arte da Língua de Angola

O Padre Pedro Dias era natural de Gouveia, distrito da Guarda e teria chegado ao Rio de Janeiro ainda em criança. Ingressou em 1641 no colégio jesuíta daquela cidade, onde concluiu a sua formação em Filosofia e Teologia. Percorreu, como era costume, os vários estabelecimentos jesuítas no Brasil, sendo procurador dos engenhos pertencentes à Companhia. Conviveu com uma grande variedade de falantes do quimbundo: jesuítas nascidos no Brasil que aprenderam a língua ou oriundos de Angola, escravos nas várias regiões que percorreu. Teve contacto possivelmente com o Padre Mateus de Aguiar, um missionário especialista nesta língua.

Em 1663, quando se encontrava em Porto Seguro, há referência de que já dominava a língua de Angola.

Foi reitor do colégio do Espírito Santo nas vilas de Vitória e de Olinda. É deste colégio que data uma sua carta em que se refere à urgência da evangelização dos povos dos engenhos… Logo que vim para este Colégio, tendo informação que havia falta da doutrina fora desta Cidade de Pernambuco, tratei de mandar sujeitos em missões breves, que os missionários obraram com grande crédito da Companhia e proveito espiritual dos próximos. (...) Primeiramente foram 2 religiosos para a parte que chamam Cabo de Santo Agostinho, pregando e fazendo doutrinas pelas capelas dos engenhos, mediante as quais se apartaram muitas almas do estado da perdição, em que estavam havia muitos anos, e se tiraram muitos erros e abusos, principalmente nos escravos angolanos, em que predominava, em alguns, tanto a ignorância que quase não tinham mais que o nome de cristãos. (1)

O colégio da Baía, onde esteve entre 1690-1700, pode ter sido o local onde conviveu com mais proximidade com o Padre Miguel Cardoso (1659-1721), nascido em Luanda, com o qual compartilhou o cuidado dos engenhos e das missões: Por saber admiravelmente a língua de Angola, tinha a seu cuidado os escravos negros e visitava os engenhos e navios ao chegarem de África, ao mesmo tempo era procurador das Missões (1).

O Padre Pedro Dias teria então 72 anos quando redigiu a carta dirigida ao Superior Geral da Ordem, na qual envia o manuscrito da gramática. Foi apelidado de “apóstolo dos negros”, dotado de uma caridade para com os pobres e pretos, cujas enfermidades curava com remédios que ele manipulava (2). Faleceu em 25 de Janeiro de 1700 no Colégio da Baía. Quando morreu, os negros correram em multidão à igreja do Colégio, e o Governador-Geral do Brasil, D. João de Lencastre, pediu a honra de o conduzir à sepultura (2). Em 1725, o seu nome foi incluído no menológio de Portugal, como um São Pedro Claver do Brasil.

 

Os jesuítas e a evangelização dos escravos no Brasil

No regulamento estabelecido pelo visitador Padre Cristóvão de Gouveia em 1583, já se mencionava a necessidade de haver padres línguas – padres intérpretes – no contacto com os índios e negros da Guiné (Angola), correspondendo a um projecto antigo de uma comunicação mais efectiva com os africanos no Brasil, também denominados etíopes.

O estudo das línguas indígenas foi considerado um meio prioritário para a evangelização dos povos, particularmente pelos jesuítas. A escrita do quimbundo tinha sido iniciada com a publicação do catecismo pelo Padre Pacconio, em Lisboa, em 1642, como suporte da evangelização dos angolanos.

Ao Brasil, chegaram milhares de escravos oriundos da costa ocidental da África, nomeadamente Angola. Grande parte falava o quimbundo, uma língua depois classificada como pertencente ao grupo banto. A comunicação era essencial, pois a maior parte chegava sem qualquer doutrinação, mesmo sendo baptizados. Os escravos encontravam-se dispersos pelas fazendas e engenhos do interior: não podendo vir às cidades e vilas, iam ter com êles os Padres, “confessando-os, casando-os, ensinando-lhes a doutrina e administrando-lhes os mais sacramentos, assim a êles como a seus senhores; e para isto se deteem, em cada fazenda, alguns dias, de que se não pode encarecer o fruto, que se colhe, porque se os Padres desta maneira o não fizeram, muito poucas daquelas almas se salvaram” (3).

O uso de intérpretes colocava grandes problemas, principalmente na tradução de conceitos cristãos, bem como no seu uso no sacramento da confissão que exigia grande prudência.

Os jesuítas no Brasil dedicaram-se à aprendizagem dessa língua, por via empírica, além das várias falas dos índios. Durante os finais do século XVI e princípios do século XVII, existia um grande número de padres falantes na língua da terra e de Angola - Domingos Nunes, Pedro da Mota, Mateus de Aguiar, Tomás de Sousa,….

As relações entre a Província do Brasil e de Angola foram sempre muito próximas. Após a ida a Luanda do visitador Pedro Rodrigues em 1593, este processo intensificou-se. Em 1620, o Provincial Simão Pinheiro enviou Luiz de Siqueira e Francisco Banha, dois jovens missionários da Companhia nascidos em Luanda, para estudarem no Colégio da Baía, com o intuito de que pudessem actuar na doutrinação dos escravos centro-africanos desembarcados no Brasil.

Na segunda metade do século XVII, o colégio de Luanda enviava numerosos jesuítas portugueses fluentes nas línguas nativas, para trabalhar entre os negros do Brasil. Luanda era na altura o principal porto de onde saíam anualmente milhares de escravos. Grande número dos peritos em quimbundo no Brasil, eram naturais de Angola, – moços negros e filhos da nobreza da terra – que tinham feito os seus estudos no colégio de Luanda.

A Arte da língua de Angola foi elaborada neste contexto. O Padre Pedro Dias teve acesso ao catecismo do Padre Pacconio, como ficou registado na obra. Faltava uma gramática, isto é, uma descrição formal das regras e características do funcionamento da língua, destinada, aos Padres. Segundo o autor estão à espera dela muitos novos e até velhos (Padres), que trabalham com estes miserabilíssimos e ignorantíssimos homens, e não se acha nenhuma Gramática desta língua, nem no Brasil nem no reino de Angola (1).

Os jesuítas durante mais de século e meio aprenderam a língua de Angola, de modo empírico ou de forma mais sistematizada através de obras como a do Padre Pedro Dias. O Brasil recebeu de Angola grande parte da sua formação, não só no campo da linguística. A história tríplice de Portugal, Angola e Brasil cruzou-se de forma particular nas primitivas cartilhas e gramáticas de evangelização dos povos de origem africana.

 

  1. LIMA, Ivana Stolze, Na Bahia, a arte da língua de Angola. Comunidades linguísticas no mundo atlântico, XXVII Simpósio Nacional de História, Natal-RN, 2013, pp. 3, 10, 11.
  2. LIMA, Ivana Stolze, Escravidão e comunicação no mundo atlântico: em torno da “língua de Angola”, século XVII, História Unisinos 21 (1):109-121, Janeiro/Abril 2017, pp. 111, 119.
  3. LEITE, Serafim, História da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, Livraria Portugália/Civilização Brasileira, 1938, tomo 2, p. 355.

 

Fonte Fotografia: Arte da lingua de Angola

 

REFERÊNCIAS

  • DIAS, Pedro, Arte da Língua de Angola, Oficina de Miguel Deslandes, Lisboa, 1697. https://purl.pt/31521/1/html/index.html#/74 (consultado 15.07.2025).
  • LEITE, Serafim, História da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, Livraria Portugália/Civilização Brasileira, Volumes 1-10, 1938 – 1947.
  • FERNANDES, Gonçalo, Primeiras descrições das línguas africanas em língua portuguesa, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Confluência Revista do Instituto de Língua Portuguesa, Nº 49 – 2º semestre de 2015.

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