A Primeira Obra Escrita em Quimbundo, Angola
Gentio de Angola (…) é o primeiro catecismo escrito em quimbundo e o mais antigo registo desta língua africana. Foi composto pelo Padre Francisco Pacconio (1589-1641), religioso jesuíta, que se dedicou ao estudo e tradução dos vocábulos desta língua africana.
O Padre António do Couto (1614-1666), igualmente jesuíta, retomou o trabalho do Padre Pacconio e publicou em 1642, em Lisboa, o Gentio de Angola sufficiemente instruido nos mysterios de nossa sancta Fé, obra posthuma composta pello Padre Francisco Pacconio da Companhia de Jesu redusida … pello Antonio de Couto, numa forma mais reduzida, de acordo com o título e, provavelmente com correcções no português, dada a origem italiana do Padre Pacconio.
O catecismo
É um catecismo bilingue, português-quimbundo, dedicado aos padres de Angola e Brasil, em edição póstuma. Tem um prólogo de António do Couto, onde expõe a finalidade da obra, a evangelização do gentio, em tom bélico, como era apanágio da Companhia de Jesus: Este livrinho servirá de armas para pelejar com a falsa idolatria, com a qual os negros ainda no paganismo honram seus falsos ídolos; ou para pelejar também com a ignorância na doutrina cristã.
O catecismo inicia-se com uma introdução Advertências para se ler a língua de Angola, manifestando o que seria um grande desafio para os religiosos, tendo em conta a falta de referência nas línguas latinas e as particularidades sonoras de uma língua que nunca tinha sido escrita. Apresenta nesta introdução uma breve descrição dos sons da língua, revelando um grande conhecimento das suas características.
Após esta introdução, o catecismo dispõe em duas páginas o texto, à esquerda em quimbundo e à direita a respectiva tradução em português. Inicia-se com uma frase em quimbundo - Maca a Milonga ya tutuma nzambi cuchíquina, ne ya yuma ya tutûma cuyáluca mo ubîca üae - logo traduzida: Diálogos dos mistérios que deus nos manda crer, e dos preceitos que nos manda guardar em a sua santa lei.
Ao longo das páginas, ensina-se a doutrina cristã - o sinal da cruz, as orações, o credo, os mandamentos da lei de Deus - em forma de diálogo entre discípulo e mestre. As frases estão numeradas, facilitando a localização da versão em português e em quimbundo.
Os autores
O Padre Francesco Pacconio nasceu em Cápua, Itália, tendo ingressado na Companhia de Jesus e partido para as Missões em 1617. Chegou a Angola em 1623, onde encontrou o Padre Cardoso, autor de uma cartilha da Doutrina cristã na língua quicongo, da região do Congo.
Acompanhou a expedição do governador Bento Banha Cardoso (1611-1615) ao Ndongo, tendo-se dedicado particularmente à evangelização desta região. Em Fevereiro de 1627, relatava a grande dificuldade na evangelização deste povo: é gente material que não crê mais do quê o que vê com os seus olhos (1)
Foi uma evangelização particularmente difícil. Celebrou a primeira missa na igreja mandada construir pelo rei, no dia 14 de Dezembro de 1627, de acordo com o relato do governador Fernão de Sousa: El rei de Dongo novamente eleito tem feito igreja, e nela disse a primeira missa o padre Francisco Paccônio da Companhia de Jesus, em 14 de dezembro do ano passado, e está com ele instruindo-o nos mistérios de nossa santa fé para o batizar e aos de sua casa e vassalos (1). Foi provavelmente neste período que o Padre Pacconio realizou o estudo da língua quimbundo, aproveitando a estadia entre as gentes do Ndongo.
O Padre Pacconio permaneceu em Angola até 1639. Regressou a Lisboa nesse ano, falecendo nesta cidade em 1641.
O Padre António do Couto era natural do Congo. Entrou na Companhia de Jesus em 1631 em São Salvador do Congo. Retomou a obra do Padre Pacconio, entretanto falecido, que fez publicar em Lisboa, no período em que os holandeses dominavam ainda a cidade de Luanda. Foi reitor do Colégio de Luanda após a retomada da cidade aos holandeses e também de São Salvador do Congo. Faleceu em Luanda em 1666.
O catecismo em Angola
O catecismo do Padre Pacconio foi utilizado abundantemente durante mais de dois séculos. A obra circulou por toda as regiões onde chegavam os missionários, também de outras instituições religiosas.
Em 1661, foi realizada uma nova edição em Roma, em três línguas – português, quimbundo e latim – pela Congregação da Propaganda Fide.
Em 1678, uma referência ao trabalho do Padre Pacconio, manifestava a utilidade profunda do mesmo trabalho na comunicação: Lá esteve o Padre Francisco Paccônio, cujo nome será eterno nesta Etiópia (Angola) pelo utilíssimo trabalho que tomou em compor na língua ambunda as orações e doutrina cristãs, coisa que se julgava impossível dar à estampa uma língua que se não escrevesse (2)
Também o Padre Pedro Dias, autor da Arte de Angola no contexto brasileiro, fez menção do catecismo dos Padres Pacconio e António do Couto, na sua obra publicada em 1697.
Em 1772, com a expulsão dos jesuítas, o catecismo do Padre Pacconio foi proibido pelo ministro de D. José I - futuro Marquês de Pombal -, sob o pretexto de incentivar o uso da língua portuguesa entre os nativos, mesmo na evangelização.
Todos os exemplares foram recolhidos e enviados para Lisboa, segundo ofício do Governador D. António de Lencastre: (…) remetendo em caixa selada com os catecismos recolhidos aos jesuítas, com que ensinavam a língua Ambunda, assim como outras mais outras artes que encontrara, em cumprimento do determinado no parágrafo 228 das instruções régias, para o seu governo em Angola (3)
Em 1784, já com D. Maria I, foi feita uma nova edição em Lisboa, idêntica à mandada retirar em 1772, com o título Gentilis Angolae in fidei mysteriis eeruditus. Opusculum reginae fidelissimae Mariae I. jussu denuo excussum. Ossipone, ex Typographia Regia, e reenviada para Angola.
Ainda em 1855, foi feita uma nova versão – a 4ª edição - da obra do Padre Pacconio Explicações de doutrina cristã em português e angolense para uso das missões do interior de Angola, acrescentando um Guia de Conversação, pelo Major Francisco de Salles Ferreira, numa edição custeada pelo negociante Francisco António Flores.
O quimbundo
O quimbundo é uma das línguas de ampla comunicação em Angola. Está classificada, segundo os estudiosos, como sendo uma das línguas do grupo banto, a maior família de línguas de África. Tem numerosas variações locais. Nos registos portugueses aparece chamada também como língua bunda, ambunda ou imbunda. Tornou-se a língua falada mais corrente ao longo do Rio Cuanza, com disseminação igualmente em Luanda.
O quimbundo apareceu traduzido pela primeira vez na obra dos Padres Pacconio e António Couto em 1642. Posteriormente foi elaborada uma gramática desta língua no Brasil, pelo Padre jesuíta Pedro Dias, em 1697, destinada à doutrinação dos escravos oriundos de Angola.
O valor do catecismo
O catecismo do Padre Pacconio é uma das primeiras tentativas de redacção das línguas africanas. Foi considerado um testemunho precioso da língua quimbundo e do saber linguístico, construído a partir da descoberta progressiva das línguas africanas pelos portugueses.
A sua finalidade principal foi servir de suporte à catequização do povo nativo, de modo a utilizar os conceitos doutrinais de modo apropriado, particularmente para explicar as realidades sobrenaturais segundo a doutrina cristã. Correspondeu à primeira fase da história da linguística africana.
Teve como efeito também o aprofundamento dos conceitos e imagens que dominavam a mentalidade africana. Termos como “Deus”, “espírito”, “alma”, teriam de ser adequadamente traduzidos de modo a evitar interpretações erróneas e sincretismos religiosos contraditórios em si mesmo.
Por outro lado, a interpretação verdadeira dos mandamentos era absolutamente necessária no esforço por adequar de modo conveniente a prática cristã nos povos, combatendo práticas ancestrais, como a feitiçaria, dominante na mentalidade africana e aliada a um poder oculto exercido pelos feiticeiros locais; ou no valor dado à vida – a morte dos súbditos, cativos e/ou escravos a capricho dos soberanos era uma prática corrente -; nas relações conjugais – a prática da poligamia tinha raízes muito profundas na cultura nativa; na noção relativa de propriedade alheia…
Os catecismos (ou cartilhas) serviram também de uma forma geral para a aprendizagem da escrita e para o desenvolvimento linguístico. De facto, foram os primeiros livros de suporte a uma aprendizagem quer do português quer da língua nativa, neste caso o quimbundo. Além da gramatização da língua, produziram novos significados e ampliaram o vocabulário quer no português quer no quimbundo.
- BRASIO, António, Monumenta Missionária Africana, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1956, Volume 7, p. pp.497- 505.
- Idem, Volume 13, p. 460.
- Arquivo Histórico Ultramarino, Série Angola, Ofício do [governador e capitão-general de Angola] D. António de Lencastre, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro. 29 de Novembro de 1772.
Fonte (fotografia): MDZ, Münchener Digitalisierungs Zentrum Digitale Bibliothek
REFERÊNCIAS
- BONVINI, Emilio, Repères pour une histoire des connaissances linguistiques des langues africaines, Histoire, Epistémologie, Langage, 1996, 18-2, pp. 127-148.
- SANTOS, Martins dos, Cultura, Educação e Ensino em Angola, Ed. Electrónica, Braga, 1998.
- AZEVEDO, Carlos (dir.), Dicionário da História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, imp., 2000.
- FERNANDES, Gonçalo, Primeiras descrições das línguas africanas em língua portuguesa, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Confluência Revista do Instituto de Língua Portuguesa, Nº 49 – 2º semestre de 2015.
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