A Misericórdia de Luanda, Angola
A Misericórdia de Luanda foi fundada em 1576, no mesmo ano da fundação da Vila de São Paulo de Luanda, pelo Padre jesuíta Garcia Simões († 1578), por encargo de Paulo Dias de Novais, o fundador de Luanda. O Padre Garcia (…) incitava os indígenas mais com o exemplo do que com vãos temores; fundou por sua iniciativa em Luanda a Casa da Misericórdia (1)
Não se sabe ao certo a data da construção da igreja, mas há referência que entre 1612 e 1616 estava instalado o Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Luanda.
Segundo Cardonega, o bispo Dom Simão de Mascarenhas († 1625) contribuiu de forma particular para o seu desenvolvimento para terem enfermarias, onde se curassem as enfermidades e doenças da terra, e não padecessem à míngua a gente pobre, e dessem pousada: - cousa que foi de muita utilidade e serviço de Deus, com que não morriam tanta gente à míngua, por falta do necessário; e, de então para cá, se foi conservando aquela Santa Casa cada vez em mais aumento com as Esmolas e Caridades dos fiéis cristãos (2).
Também Dom Francisco do Soveral (c. 1570-1642) teve um papel preponderante como Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Luanda, que desenvolveu uma intensa actividade no âmbito dos cuidados de saúde, nomeadamente após a expulsão dos holandeses em 1648.
A igreja e o hospital da Misericórdia foram restaurados nos finais do século XVII, no governo de Francisco de Távora (1669-1676). O novo edifício foi construído com uma fachada muito simples – a que actualmente se visualiza. A igreja restaurada foi benzida no dia 17 de Julho de 1679 pelo Bispo Dom Frei Manuel da Natividade (1620-1685), passando a ser o templo mais importante nas festividades tradicionais.
Segundo Cardonega, prestava assistência aos presos e aos pobres, garantindo-lhes alimentação, cuidados básicos particularmente os associados ao mal de Luanda (o escorbuto) e acções legais para a sua defesa ou libertação.
Em 1684, o Hospital da Santa Casa é referido como o lugar onde se atendia um grande número de pobres, e particularmente os soldados doentes: elles tem hum Hospittal, em que curaõ todos os soldados que adoeçem e forasteiroz e mais pobres, com toda a charidade, que hé possiuel; e que socorrem mais de sincoenta vezittadas, e fazem outras obras pias (…),sendo as esmollaz muy lemittadas (…) (3).
O Hospital experimentou igualmente as consequências da expulsão dos jesuítas em 1760, nomeadamente a falta de medicamentos, fornecidos anteriormente pela botica dos religiosos.
Em 1791, a Misericórdia foi utilizada como hospital-escola, com a criação a Aula de Medicina e Anatomia de Luanda por D. Maria I. No edifício da Santa Casa, o seu primeiro director, o médico e físico-mor de Angola Dr. José Pinto de Azeredo, proferiu a sua célebre Oração Sapiencial – discurso inaugural da mais antiga Escola Médica da região.
Nos começos do século XIX, no período conturbado que se seguiu à implantação da República em Portugal, foi extinta a irmandade e a Santa Casa passou a ser dirigida por Comissões Administrativas. Neste período, o hospital militar encontrava-se integrado no Hospital da Misericórdia.
A falta de definição legal do regime da instituição e as dificuldades financeiras tiveram como consequência uma degradação notória das actividades de assistência. A Escola Médica foi extinta, e os médicos-militares passaram a ocupar mais funções e responsabilidades na antiga Santa Casa.
Em meados do século XIX, foi denominado Hospital-Militar - Santa Casa de Luanda, mantendo-se as comissões administrativas presididas por médicos estabelecidos pelo governo.
Em 1876, o nome Santa Sasa foi suprimido do Hospital, que passou a ser designado Hospital Militar de Luanda. A actividade caritativa foi assumida pelas Irmãs da Caridade, possibilitando que não desaparecesse a função primordial esta antiga instituição.
No final do século XIX, a Santa Casa da Misericórdia abandonou aos poucos as suas actividades de assistência, com risco de extinção: o Hospital-militar instalado no edifício precisava de obras urgentes de remodelação e ampliação e a abertura do Hospital Maria Pia em 1883, absorveu os serviços de saúde.
A Misericórdia de Luanda durante o primeiro quartel do século XX manteve a actividade caritativa possível dentro dos seus fracos recursos. Em 1929, foi encarregada da administração do Instituto Feminino D. Pedro V - antigo Asilo de Luanda - fundado em 1854 e destinado ao recolhimento e formação de meninas órfãs, função que ainda actualmente desempenha.
Em 1949, a igreja e o hospital da Misericórdia foram classificados como Imóvel de Interesse Público, valorizando deste modo o legado secular da instituição em Luanda.
Finalmente em 1963, foi realizada a restauração canónica da Santa Casa da Misericórdia de Luanda por Dom Moisés Alves de Pinho (1883-1980), Arcebispo da Arquidiocese de Luanda, passando a ser responsabilidade da Diocese.
Em 2023, foi comemorado de forma particular os 447 anos de existência desta venerável instituição e os 60 anos da sua restauração canónica.
As Misericórdias
A Santa Casa da Misericórdia foi instituída, em Lisboa, com a respectiva irmandade, em 1498, pela Rainha D. Leonor (1458-1525). A expansão da Misericórdia foi muito rápida, sendo desejo da Rainha expandi-la por todo o Portugal e, logo de início, nos territórios dependentes da coroa portuguesa.
As Misericórdias incluíam um hospital, serviços de assistência e uma igreja anexa. A assistência destinava-se a pôr em prática as Catorze Obras de Misericórdia, como em todas as Misericórdias do Reino e dos territórios sob domínio português, segundo o Compromisso original:
Pois o fundamento desta santa confraria e irmandade é cumprir as Obras de Misericórdia. É necessário saber as ditas obras, que são catorze. São sete espirituais: ensinar os simples; dar bom conselho a quem o pede; castigar com caridade os que erram; consolar os tristes e desamparados; perdoar a quem errou; sofrer as injúrias com paciência; rogar a Deus pelos vivos e mortos. Idem as corporais são sete: remir cativos e presos; visitar e curar os enfermos; cobrir os nus; dar de comer aos famintos; dar de beber aos que têm sede; dar pousada aos peregrinos e pobres; enterrar os mortos* (4)
As Misericórdias são instituições que perduraram e se mantêm na actualidade, fieis aos seus princípios fundacionais, em inúmeras regiões de todos os continentes, mesmo após os territórios terem ganho a sua independência de Portugal.
A Santa Casa da Misericórdia de Luanda foi uma das primeiras Misericórdias a serem instituídas nas regiões ultramarinas. A sua actividade abrangia particularmente os pobres e desamparados, sendo sustentada por esmolas dos habitantes de Luanda, além do patrocínio Real.
A Santa Casa de Misericórdia de Luanda, com uma secular e valiosa herança de bem-fazer, define-se actualmente como uma instituição religiosa de beneficência com personalidade jurídica, tutelada pela Arquidiocese de Luanda. Mantém o seu propósito original de 1576: a assistência aos mais pobres e vulneráveis, concretizada na vivência das catorze Obras de Misericórdia. Está integrada na União das Misericórdias Portuguesas, com a qual mantém intensos laços de colaboração.
*Linguagem actualizada
- POMBO, Manuel Ruela, Diogo Cão, I Série, Nº 1, 1931, p. 28.
- CARDONEGA, António de Oliveira, História Geral das Guerras Angolanas, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1972
- BRASIO, António, Monumenta Missionária Africana, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1953, Volume 13, p. 548
- “Misericórdias, cinco séculos”, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Oceanos, Lisboa, nº35, 1998, p. 26.
REFERÊNCIAS
- SANTOS, Martins dos, Cultura, Educação e Ensino em Angola, Ed. Electrónica, Braga, 1998.
- FERRAZ, Susana, Espaço Público de Luanda, Património arquitectónico colonial angolano e português, Dissertação de mestrado, Porto FAUP, 2005.
- MATTOSO, José (Dir.), Património de Origem Portuguesa no Mundo, arquitectura e urbanismo: África, Mar Vermelho e Golfo Pérsico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
- MARIZ, Vera Félix, A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974), Dissertação de Doutoramento, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2016.
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